O que é a Verdade?
A agonia da verdade relativa
O que é a verdade (Quid es veritas1)? É certamente a pergunta mais avassaladora que o ser humano pode fazer a si mesmo e ao outro. Com toda certeza, ao fazer essa pergunta a Jesus Cristo, Pôncio Pilatos não imaginava que daria voz à pergunta mais profunda do ser humano e que ela ecoaria por toda a existência humana. É a pergunta que une crentes e descrentes, religiosos e cientistas, letrados e iletrados, os coloca todos no mesmo patamar e é capaz de fazer o maior cientista sentir-se o ser mais ignorante. É a pergunta que causa alívio em alguns e sofreguidão em outros. Alivia a quem acredita tê-la encontrado e angustia a quem ainda está na busca de encontrá-la.
É uma pergunta que desnuda o
orgulho e revela toda a incapacidade humana de dar uma resposta, que, ao
primeiro olhar parece simples, mas que compreende a existência do universo e
tudo o que ele contém. Essa pergunta nos expõe ao ridículo ao nos fazer hesitar
em responder, por não encontrar nas palavras já conhecidas os termos
suficientemente capazes de corresponder à tamanha responsabilidade, e mesmo
aqueles que ousaram usar as palavras, viram-se tantas vezes refutados por algum
outro pensamento ulterior, que pode, em certos momentos raros de iluminação, exprimir
uma parte infinitesimal da menor fração do que vem a ser a verdade. De modo
que, o que pensamos como verdade, pode não passar de uma miragem criada pela
grande necessidade. Contudo, essa miragem, assim como no deserto, pode acabar
confundindo aquele que a “vê”, pois, acha que vê a verdade, porém, não passa de
uma imagem fantasma, mas que, por não ter outra opção, acaba por assumir essa
miragem como uma verdade.
A necessidade de encontrar a
resposta para essa pergunta é a força motriz que impulsionou muitos, senão,
todos os grandes pensadores, como Santo Agostinho de Hipona, por exemplo.
Contudo essa necessidade está contida na gênese humana, ou seja, ela não está
restrita apenas aos intelectuais, é uma força natural. Todo o ser consciente
intelectual é inclinado naturalmente à busca da verdade, na qual está contida a
busca pela felicidade, que no fundo termina por ser a mesma coisa, não há uma
dicotomia entre felicidade e verdade.
Muitos, desde os tempos mais
remotos e em todas as esferas da sociedade trilharam caminhos diversos em busca
da resposta de ouro, que é capaz de mudar para sempre a humanidade e mesmo
aqueles que não são, digamos, intelectuais, de modo muitas vezes
inconscientemente, estão a todo instante nessa mesma busca em diferentes lugares.
É interessante notar que ao mesmo tempo em que todos buscam a mesma resposta,
tomam eles caminhos diferentes na tentativa de a encontrar.
Essa vontade de conhecer a
verdade é uma força natural potentíssima que causa em nós uma inquietação
insaciável. É essa força que faz o homem buscar o espaço sideral ou os
registros arqueológicos, como uma tentativa de desfazer essa ignorância inata.
O avanço da tecnologia que abriu
as portas à Era do conhecimento e prometia, como ainda promete, colocar todo o
conhecimento à disposição humana, na palma da sua mão. Parecia que enfim o ser
humano iria ser capaz de ter abertos os olhos, ser como deus e conhecedor do
bem e do mal2. Estava à sua frente a possibilidade de finalmente
descobrir a verdade.
No entanto, a barreira que dava
impressão de se desfazer diante das novas possibilidades humanas de acesso ao
conhecimento, parece ser intransponível no que tange a tal verdade. De modo
paradoxal, quanto mais informações estão disponíveis, mais longe parece estar o
homem a resposta.
Com o advento da tecnologia, veio
também a relativização da verdade. Atualmente existem várias verdades, não
porque elas existam realmente, mas porque o conceito de verdade foi mudado para
se adaptar à realidade individual. A verdade deixou de ser o contrário da
mentira, e passou a ser aquilo que concede o conforto que a pessoa busca. Sendo
assim, diz-se que é verdade aquilo que a pessoa acha que é e não o que a tira
da zona de conforto.
Essa relativização da verdade,
que parecia um bem, tem causado na sociedade espasmos cada vez mais graves,
levando-a a mergulhar numa profunda crise existencial, pois, o ser humano
hodierno já não se identifica consigo mesmo. A verdade relativa liquefez o solo
firme que dava segurança ao homem de ser, e com tantas possibilidades de
escolha, acaba perdendo o sentido da vida e sucumbindo às imposições externas
que dizem que “ele pode ser quem ou o que ele quiser”.
Diante de tantas possibilidades e
da pressão de ter que escolher um modelo já projetado pela sociedade, é normal
que o mundo esteja não mergulhado em informação, mas, sofrendo um dilúvio que
parece afogar o ser humano, levando-o a desconhecer a sua própria imagem no
espelho e querer ser alguém que não é, na tentativa de encontrar o verdadeiro
eu em caricaturas de si mesmo, criadas a partir dos novos conceitos de verdade
e liberdade que são impostos pelo mundo. Acontece então uma pseudodicotomia –
pois não há como haver divisão - onde, o ser imanente separa-se do ser
transcendente, que agora é dito decadente e inepto. Esse cisma interior causa
na alma uma grande angústia de onde surge com força voraz a bendita pergunta,
“o que é a verdade?”.
Parece que é durante tal cisma
que surgem as enfermidades psicológicas mais profundas, pois, elas não têm uma
causa passível de identificação, talvez o seja justamente por não terem origem
em fatos isolados e nomináveis, não por não serem verdadeiros, mas, por não
habitarem no âmbito natural, e sim no âmbito sobrenatural.
Basta uma rápida observação do
mundo para perceber que a causa primeira de toda essa confusão e sofrimento,
surge e subsiste na ambiguidade da verdade. Foram criadas tantas caricaturas da
verdade que as pessoas perambulam de um lado para o outro sem nem saber quem
são, de onde vieram e para onde devem ir, pois, as respostas para essas
questões, dependem de uma resposta a pergunta que está no caput desse texto.
A verdade é como um trilho que dá
ao ser humano a segurança para conduzir a própria vida com a firmeza de saber
quem ele é, de onde veio e para onde deve ir.
A verdade é que a verdade existe
e é só uma, caso contrário não poderia ser chamada de verdade. A angústia
humana é real enquanto a busca por ela se concentra neste mundo.
Para o cristão, e ainda que a
contragosto dos descrentes, a resposta a essa questão já havia sido dada
previamente pelo mesmo Jesus Cristo que agora opta pelo aparente silêncio
diante de Pilatos. Ele é a verdade3. Pilatos estava diante da
resposta para a pergunta que o inquietava, mas, pela dureza do coração não foi
capaz de reconhecer naquela Pessoa aparentemente derrotada a encarnação da
Verdade. A resposta era quiçá, simples e improvável demais para um governador
que talvez pretendesse dar uma reposta mais adequada à profundidade da
pergunta. A verdade é, portanto, uma Pessoa? Sim. Contudo, não é uma pessoa
qualquer. Essa Pessoa não contém a verdade, ela é a própria Verdade. Essa
Pessoa é a mesma que disse a frase “Ego
sum via veritas et vita3” a qual já havia se anunciado “Ego sum qui sum4”.
Descobrir que a verdade é uma
Pessoa não finda com todas as questões acerca do assunto, haja vista que, se a
Verdade é uma pessoa e essa Pessoa é Deus, logo sendo Ele infinito, as questões
a seu respeito serão infinitas. Todavia, ao fazer essa descoberta, aquela
angústia vazia e estéril começa a ceder lugar a uma angústia diferente, que,
apesar da ausência ainda de algumas respostas, agora já responde ao ser humano
quem ele é, de onde veio e para onde deve ir. Essa nova angústia é o desejo de
Deus, que já não adoece o espírito humano que agora já consegue contemplar o
objeto de sua angústia e a possibilidade de o alcançar. Não busca mais o nada.
A partir de então aquela força
motriz que deixava a alma cambaleante perdida em incontáveis caminhos, passa a
impulsioná-la para o caminho que leva ao lugar onde está o Logos. Daqui para a
frente não está mais sozinho, pois, muito maior que a vontade da alma de
conhecer a Verdade, é o desejo da própria Verdade de revelar-se à alma, afinal
de contas, pelas mãos e pelo querer da Verdade ela foi criada. A alma humana
tem necessidade da Verdade assim como a Verdade tem necessidade da alma humana,
não por ser uma Pessoa incompleta, mas porque quer. O desejo outrora
inconsciente e incompreendido de conhecer a Verdade, agora dá lugar a um desejo
direcionado, que é capaz de curar todo o espasmo da alma pelo fato de que agora
ela sabe o que deseja, o que deve fazer para alcançar o desejo e para onde
caminha.
Santo agostinho esclarece o
porquê e responde a essa angústia humana quando afirma que a Verdade criou o
homem para Si e inquieto estará o coração humano enquanto Nela não repousar5.
A encarnação da Verdade elimina per se qualquer probabilidade de sua
relativização, partindo do pressuposto que uma pessoa é sempre única e
irrepetível. Se, portanto, é assim o ser humano, mais ainda o é Deus, que é a
Suprema Verdade eterna, imutável e suficiente.
Se lermos com calma os
Evangelhos, veremos que, o que fez os apóstolos deixarem tudo e seguirem Jesus
imediatamente não foi o Seu discurso ou Sua taumaturgia. O que fê-los seguir
foi sobretudo a Sua Pessoa que é a Verdade tornada Homem para o homem. Ele é A
Verdade. Sendo A Verdade, só pode ser também o Caminho que consequentemente dá
a Vida.
O que adoece a alma humana é a
relativização da verdade. O que cura essa doença é contemplar A Verdade
verdadeira.
“Ego sum via veritas et vita3”
1. 1. Evangelho de São João 18, 38 a;
2. 2. Gênesis 3, 5;
3. 3. Evangelho de São João 14, 6;
4. 4. Êxodo 3, 14;
5. “Fizeste-nos
para Ti e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti”. (Santo Agostinho, Confissões, I, 1,1).
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